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Stablecoins e a Dívida Americana: o novo elo invisível do poderio americano

O novo motor do dólar digital


A história das finanças é marcada por revoluções silenciosas. Uma delas está acontecendo agora, quase despercebida, sob o nome burocrático de stablecoins. Essas criptomoedas “estáveis” — supostamente lastreadas em dólares ou títulos públicos — estão se tornando o lubrificante digital do sistema financeiro global.


Mas há um detalhe crucial: para garantir que cada unidade de stablecoin realmente valha um dólar, as empresas emissoras precisam manter reservas em ativos líquidos. E o ativo mais líquido, seguro e universalmente aceito do planeta ainda é o título do Tesouro dos Estados Unidos.


Ou seja, quanto mais stablecoins o mundo adota, mais dívida americana é comprada.


Como os Estados Unidos descobriram um novo comprador para sua dívida


Os Estados Unidos vivem de crédito. Com uma dívida pública acima de US$ 35 trilhões, o país precisa emitir constantemente novos títulos para rolar os antigos e financiar déficits crescentes. Tradicionalmente, quem compra essa dívida são:


  • Fundos de pensão e bancos americanos;

  • Bancos centrais estrangeiros (China, Japão, Europa);

  • Investidores institucionais que buscam segurança e liquidez.


Mas nos últimos anos, esses compradores tradicionais começaram a se afastar. A China, por razões geopolíticas. O Japão, por necessidade doméstica. E a Europa, por restrições fiscais e riscos cambiais.


Nesse vácuo, um novo ator entrou em cena: os emissores de stablecoins.


Empresas como Tether (USDT) e Circle (USDC) passaram a comprar dezenas de bilhões de dólares em Treasuries para garantir a paridade de suas moedas digitais. Em meados de 2025, Tether já figurava entre os dez maiores compradores institucionais de títulos americanos, com uma posição superior a US$ 100 bilhões — o que equivale, grosso modo, à carteira de países médios como a Noruega.


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O círculo vicioso virtuoso


O mecanismo é simples, mas engenhoso:


  1. Usuários ao redor do mundo compram stablecoins para fazer pagamentos, arbitragens, remessas ou apenas fugir de moedas instáveis.

  2. As empresas emissoras pegam esse dinheiro e aplicam em títulos do Tesouro dos EUA.

  3. Esses títulos rendem juros, reforçando a rentabilidade do emissor.

  4. O emissor continua expandindo a emissão de stablecoins — o que, por sua vez, aumenta a demanda por novos títulos.


É o que alguns analistas já chamam de “o circuito dólar digital” — um loop autoalimentado entre o sistema cripto e o Tesouro americano.


O resultado? O dólar se digitaliza sem depender do Federal Reserve. O Tesouro ganha compradores automáticos. E o poder financeiro americano se estende sobre o mundo cripto sem precisar travar guerras cambiais.


A contradição central: inovação ou dependência?


No curto prazo, isso é um presente dos céus para Washington. Stablecoins aumentam a liquidez dos títulos, ajudam a manter juros baixos e consolidam a supremacia do dólar como moeda global — agora também digital.


Mas há uma ironia embutida: o império se financia através de seus próprios “tokens privados”. Ou seja, a estrutura de poder monetário dos EUA está sendo parcialmente terceirizada para empresas sem supervisão central direta.


Se uma grande stablecoin quebrar ou sofrer uma corrida de resgates, o impacto pode ser sistêmico:

  • Vendas massivas de Treasuries pressionariam os juros para cima;

  • Bancos e fundos seriam afetados pela volatilidade;

  • E o próprio Tesouro americano sentiria o abalo na demanda pelos seus papéis.


A crise da Terra/Luna, em 2022, foi um lembrete brutal do que acontece quando a “estabilidade” é apenas retórica. A diferença agora é que, em vez de US$ 60 bilhões evaporando, falamos de centenas de bilhões de dólares ligados diretamente à dívida americana.


A geopolítica do dinheiro digital


Há também um componente geopolítico que não pode ser ignorado.

Cada stablecoin emitida em dólar e usada fora dos EUA é, na prática, uma extensão do domínio monetário americano. Mesmo que o emissor seja privado, o ativo de referência é o dólar — e o lastro, um título público dos Estados Unidos.

Isso significa que stablecoins:


  • Reforçam o poder do dólar como moeda global;

  • Enfraquecem alternativas regionais (como o yuan digital ou projetos de moedas dos BRICS);

  • Criam dependência financeira privada de empresas sob jurisdição americana, mesmo quando atuam em países adversários.


É o império, reconfigurado em código.


O futuro provável: regulação e integração


O Congresso americano já percebeu o jogo. Propostas como o GENIUS Act e outras iniciativas no Senado buscam enquadrar as stablecoins dentro de um arcabouço regulatório que as torne quase bancos:


  • Reservas 100% em ativos líquidos (T-bills ou caixa);

  • Proibição de pagar rendimento direto;

  • Supervisão do Federal Reserve e do Tesouro;

  • Auditorias e transparência obrigatória.


O objetivo é claro: transformar stablecoins em braços auxiliares da política monetária americana — instrumentos de poder disfarçados de inovação financeira.


O dilema final


Se as stablecoins forem domesticadas, os EUA ganham uma nova ferramenta de financiamento e controle global. Mas se permanecerem selvagens, podem se tornar um calcanhar de Aquiles digital, com riscos de liquidez, manipulação e fuga de capitais em escala planetária.


De um jeito ou de outro, elas já mudaram o equilíbrio de forças.

A dívida americana, antes financiada por bancos centrais e fundos soberanos, agora é parcialmente sustentada por tokens circulando entre traders, exchanges e usuários anônimos espalhados pelo planeta.

O “sistema dólar” sobrevive, mas seu coração está batendo em blockchain.


O novo arranjo invisível

A relação entre stablecoins e a dívida americana é o exemplo mais recente de como o poder econômico se reinventa sem pedir licença.


O que parecia uma ameaça — o avanço das criptomoedas — virou uma ferramenta de sustentação do império.A moeda digital não destruiu o dólar.Ela o digitalizou, descentralizou e multiplicou.


O resultado é um sistema onde cada token “estável” é, no fundo, uma nota promissória do Tesouro dos Estados Unidos, embrulhada em código, distribuída globalmente e aceita como inevitável.


É a nova alquimia financeira: transformar dívida em confiança digital.

E o mundo, mais uma vez, comprou a história.

 
 
 

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