Stablecoins e a Dívida Americana: o novo elo invisível do poderio americano
- Carlos Honorato Teixeira

- 10 de out.
- 4 min de leitura
O novo motor do dólar digital
A história das finanças é marcada por revoluções silenciosas. Uma delas está acontecendo agora, quase despercebida, sob o nome burocrático de stablecoins. Essas criptomoedas “estáveis” — supostamente lastreadas em dólares ou títulos públicos — estão se tornando o lubrificante digital do sistema financeiro global.
Mas há um detalhe crucial: para garantir que cada unidade de stablecoin realmente valha um dólar, as empresas emissoras precisam manter reservas em ativos líquidos. E o ativo mais líquido, seguro e universalmente aceito do planeta ainda é o título do Tesouro dos Estados Unidos.
Ou seja, quanto mais stablecoins o mundo adota, mais dívida americana é comprada.
Como os Estados Unidos descobriram um novo comprador para sua dívida
Os Estados Unidos vivem de crédito. Com uma dívida pública acima de US$ 35 trilhões, o país precisa emitir constantemente novos títulos para rolar os antigos e financiar déficits crescentes. Tradicionalmente, quem compra essa dívida são:
Fundos de pensão e bancos americanos;
Bancos centrais estrangeiros (China, Japão, Europa);
Investidores institucionais que buscam segurança e liquidez.
Mas nos últimos anos, esses compradores tradicionais começaram a se afastar. A China, por razões geopolíticas. O Japão, por necessidade doméstica. E a Europa, por restrições fiscais e riscos cambiais.
Nesse vácuo, um novo ator entrou em cena: os emissores de stablecoins.
Empresas como Tether (USDT) e Circle (USDC) passaram a comprar dezenas de bilhões de dólares em Treasuries para garantir a paridade de suas moedas digitais. Em meados de 2025, Tether já figurava entre os dez maiores compradores institucionais de títulos americanos, com uma posição superior a US$ 100 bilhões — o que equivale, grosso modo, à carteira de países médios como a Noruega.

O círculo vicioso virtuoso
O mecanismo é simples, mas engenhoso:
Usuários ao redor do mundo compram stablecoins para fazer pagamentos, arbitragens, remessas ou apenas fugir de moedas instáveis.
As empresas emissoras pegam esse dinheiro e aplicam em títulos do Tesouro dos EUA.
Esses títulos rendem juros, reforçando a rentabilidade do emissor.
O emissor continua expandindo a emissão de stablecoins — o que, por sua vez, aumenta a demanda por novos títulos.
É o que alguns analistas já chamam de “o circuito dólar digital” — um loop autoalimentado entre o sistema cripto e o Tesouro americano.
O resultado? O dólar se digitaliza sem depender do Federal Reserve. O Tesouro ganha compradores automáticos. E o poder financeiro americano se estende sobre o mundo cripto sem precisar travar guerras cambiais.
A contradição central: inovação ou dependência?
No curto prazo, isso é um presente dos céus para Washington. Stablecoins aumentam a liquidez dos títulos, ajudam a manter juros baixos e consolidam a supremacia do dólar como moeda global — agora também digital.
Mas há uma ironia embutida: o império se financia através de seus próprios “tokens privados”. Ou seja, a estrutura de poder monetário dos EUA está sendo parcialmente terceirizada para empresas sem supervisão central direta.
Se uma grande stablecoin quebrar ou sofrer uma corrida de resgates, o impacto pode ser sistêmico:
Vendas massivas de Treasuries pressionariam os juros para cima;
Bancos e fundos seriam afetados pela volatilidade;
E o próprio Tesouro americano sentiria o abalo na demanda pelos seus papéis.
A crise da Terra/Luna, em 2022, foi um lembrete brutal do que acontece quando a “estabilidade” é apenas retórica. A diferença agora é que, em vez de US$ 60 bilhões evaporando, falamos de centenas de bilhões de dólares ligados diretamente à dívida americana.
A geopolítica do dinheiro digital
Há também um componente geopolítico que não pode ser ignorado.
Cada stablecoin emitida em dólar e usada fora dos EUA é, na prática, uma extensão do domínio monetário americano. Mesmo que o emissor seja privado, o ativo de referência é o dólar — e o lastro, um título público dos Estados Unidos.
Isso significa que stablecoins:
Reforçam o poder do dólar como moeda global;
Enfraquecem alternativas regionais (como o yuan digital ou projetos de moedas dos BRICS);
Criam dependência financeira privada de empresas sob jurisdição americana, mesmo quando atuam em países adversários.
É o império, reconfigurado em código.
O futuro provável: regulação e integração
O Congresso americano já percebeu o jogo. Propostas como o GENIUS Act e outras iniciativas no Senado buscam enquadrar as stablecoins dentro de um arcabouço regulatório que as torne quase bancos:
Reservas 100% em ativos líquidos (T-bills ou caixa);
Proibição de pagar rendimento direto;
Supervisão do Federal Reserve e do Tesouro;
Auditorias e transparência obrigatória.
O objetivo é claro: transformar stablecoins em braços auxiliares da política monetária americana — instrumentos de poder disfarçados de inovação financeira.
O dilema final
Se as stablecoins forem domesticadas, os EUA ganham uma nova ferramenta de financiamento e controle global. Mas se permanecerem selvagens, podem se tornar um calcanhar de Aquiles digital, com riscos de liquidez, manipulação e fuga de capitais em escala planetária.
De um jeito ou de outro, elas já mudaram o equilíbrio de forças.
A dívida americana, antes financiada por bancos centrais e fundos soberanos, agora é parcialmente sustentada por tokens circulando entre traders, exchanges e usuários anônimos espalhados pelo planeta.
O “sistema dólar” sobrevive, mas seu coração está batendo em blockchain.
O novo arranjo invisível
A relação entre stablecoins e a dívida americana é o exemplo mais recente de como o poder econômico se reinventa sem pedir licença.
O que parecia uma ameaça — o avanço das criptomoedas — virou uma ferramenta de sustentação do império.A moeda digital não destruiu o dólar.Ela o digitalizou, descentralizou e multiplicou.
O resultado é um sistema onde cada token “estável” é, no fundo, uma nota promissória do Tesouro dos Estados Unidos, embrulhada em código, distribuída globalmente e aceita como inevitável.
É a nova alquimia financeira: transformar dívida em confiança digital.
E o mundo, mais uma vez, comprou a história.

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