Microeconomia do déficit público (1): quando a “indenização” vira privilégio e o teto deixa de existir
- Carlos Honorato Teixeira

- 2 de jul.
- 5 min de leitura
Atualizado: 9 de jul.
📌 O que é a microeconomia dos déficit público?
Falar em déficit público costuma evocar gráficos, porcentagens do PIB e discussões sobre dívida e arrecadação. Mas isso é só a superfície. A microeconomia do déficit público nos convida a descer um nível — não para apontar o dedo genérico para “privilégios”, mas para destrinchá-los com lupa. Examina como cada estrutura, cada carreira, cada benefício e cada incentivo escondido contribui, em escala microscópica, para um desequilíbrio gigantesco. É a anatomia do gasto público visto por dentro, onde o déficit não aparece como uma fatalidade macro, mas como a soma de milhares de microdecisões equivocadas, convenientes ou silenciosamente aceitas.

A erosão silenciosa da responsabilidade fiscal: quando a “indenização” vira privilégio e o teto deixa de existir
No Brasil, os mecanismos formais de controle do gasto público foram progressivamente corroídos por dentro — não por enfrentamento direto, mas por tecnicalidades normativas e contorcionismos jurídicos que transformaram o que deveria ser exceção em regra: a remuneração via indenização.
Trata-se de uma das mais profundas distorções contemporâneas no sistema remuneratório do funcionalismo público, especialmente no topo da pirâmide institucional. A elite do Estado brasileiro passou a operar com autonomia orçamentária ampliada, blindagem tributária prática e margens ilimitadas de autorregulação.
Este artigo examina o que está em jogo — do ponto de vista fiscal, jurídico e moral.
1. O mecanismo: remuneração indireta, isenta e fora do teto
A Constituição Federal de 1988 estabelece um teto para a remuneração do funcionalismo público vinculado ao subsídio dos ministros do Supremo Tribunal Federal. Esse teto foi criado justamente para evitar o crescimento descontrolado dos salários no serviço público, além de resguardar a isonomia entre os Poderes e frear a expansão de privilégios não compatíveis com a realidade fiscal brasileira.
Contudo, nos últimos anos, consolidou-se um artifício cada vez mais disseminado: a transformação de parcelas remuneratórias em verbas indenizatórias. Na prática, remunerações são classificadas como "indenização" para que não estejam sujeitas ao teto constitucional, não componham a base de cálculo da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e, adicionalmente, fiquem isentas de Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF).
É uma tríplice blindagem:
Não entra no teto
Não conta como gasto com pessoal
Não paga tributo
Esse fenômeno não se trata de exceção pontual ou ajuste isolado. Trata-se de uma reestruturação sistêmica da forma como a elite pública é remunerada no Brasil, com implicações diretas sobre a equidade tributária, a sustentabilidade fiscal e a credibilidade das instituições.
2. A prática da “venda de folgas” como novo modelo de remuneração
Entre os instrumentos mais utilizados nessa engenharia institucional, destaca-se a chamada venda de folgas.
O funcionamento é simples: cria-se um direito a folgas (por exemplo, em função de plantões, acúmulo de função, atuação em localidades distantes ou situações excepcionais). Essas folgas, contudo, não são efetivamente usufruídas. Em vez disso, são convertidas em pagamento indenizatório, como se o Estado estivesse “comprando” de volta algo que ele mesmo criou como benefício.
Essa operação gera um pagamento líquido, elevado, isento de IRPF e sem incidência previdenciária — ao mesmo tempo em que não é considerado remuneração formal, não computa para o teto e não pressiona os indicadores da LRF.
A mecânica é tão eficiente que, em alguns tribunais, o valor das indenizações recebidas anualmente por magistrados já ultrapassa os R$ 300 mil por servidor, sem qualquer incidência tributária proporcional.
3. A captura institucional dos instrumentos de controle
O que torna essa distorção ainda mais grave é o fato de que os próprios órgãos responsáveis pela regulação, fiscalização e julgamento da conformidade constitucional desses mecanismos — notadamente o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e os tribunais superiores — passaram a chancelar tais práticas.
Por meio de resoluções internas, interpretações administrativas e decisões colegiadas, consolidou-se a doutrina segundo a qual a natureza indenizatória de determinados pagamentos decorre da forma como são rotulados, e não de sua essência ou função econômica. Em outras palavras, basta que um órgão público classifique um valor como “indenizatório” para que ele se torne automaticamente isento de limites e obrigações.
Esse movimento desconfigura a ideia original de responsabilidade fiscal, que pressupõe contenção, previsibilidade e transparência no uso dos recursos públicos.
4. O impacto orçamentário e a falácia da progressividade
É importante dimensionar o impacto real dessa distorção. Estima-se que, em diversas esferas do Judiciário e do Ministério Público, os valores pagos a título de indenização já superam os montantes gastos com programas sociais estruturantes, como o Pé-de-Meia, voltado à poupança educacional de jovens vulneráveis.
O problema não é apenas o valor absoluto, mas a mensagem institucional: enquanto o Estado exige contenção dos gastos sociais e moderação no salário mínimo, parcela significativa de sua elite opera em um regime de exceção tributária.
Esse sistema, além de moralmente insustentável, bloqueia qualquer debate sério sobre progressividade tributária. Como justificar uma tributação adicional sobre grandes fortunas ou rendas elevadas se o topo do funcionalismo, em muitos casos, já opera com alíquotas efetivas abaixo de 7% sobre seus rendimentos totais?
5. O risco de contágio e a implosão da isonomia
Se esse modelo se espalhar — e já há sinais de que procuradorias, defensorias e até tribunais de contas estaduais estão replicando o arranjo — teremos em breve um sistema fiscal colapsado por dentro, em que a distinção entre “renda” e “indenização” passa a ser mera conveniência semântica.
Mais do que isso: abre-se um precedente perigoso. O setor privado começa a questionar: por que não fazer o mesmo? Por que pagar tributos sobre folha de pagamento se é possível criar “indenizações”? Por que recolher contribuição previdenciária se há outras rotas juridicamente viáveis?
É a própria isonomia tributária que começa a ruir — e com ela, o princípio republicano de que todos devem contribuir com o Estado segundo sua capacidade contributiva.
6. Uma ruptura institucional anunciada
Esse sistema não é sustentável. A curva de crescimento dos gastos indenizatórios é exponencial, e sua base legal é, na melhor das hipóteses, contestável. Em algum momento, o Estado brasileiro será forçado a escolher entre duas rotas:
Aceitar a erosão completa da responsabilidade fiscal, da progressividade tributária e da confiança social no sistema jurídico, ou
Impor um marco regulatório claro, que redefina o que pode e o que não pode ser classificado como verba indenizatória.
Esse debate é inadiável. Não se trata de atacar o funcionalismo, tampouco de negar a importância do Judiciário. Mas sim de preservar a integridade do pacto fiscal brasileiro, a legitimidade do Estado e a coerência das reformas em curso.
Conclusão
O Brasil vive hoje uma dissonância grave entre o discurso da austeridade e a prática da complacência com privilégios legalmente disfarçados. O teto remuneratório virou ficção. A LRF foi esvaziada. O Imposto de Renda perdeu sua progressividade real no topo do funcionalismo.
E tudo isso não foi feito por fora da lei — mas dentro dela, por meio de interpretações que rasgam seu espírito e mantêm apenas sua aparência.
Se o país deseja de fato enfrentar sua desigualdade estrutural, precisa começar pelo topo da máquina pública, onde os privilégios já deixaram de ser exceções e passaram a ser a regra invisível do jogo.
A microeconomia do déficit público é uma série de estudos disponíveis no portal honoratox destrinchando os detalhes dos gastos
Acompanhe nosso trabalho
🌎 Cenários HonoratoX🔗 honoratox.com🧠 Análises econômicas, cenários futuros e estratégias
🚀 OUTPOD – Inteligência em Ação🔗 outpod.com.br🤖 Estratégia, Cenários e Inteligência Competitiva
⚡ OUTPODIA – Visualize o Futuro🔗 outpodia.com🎨 Dados, cenários e aplicações IA


Comentários